terça-feira, 6 de março de 2007

Entrevista - Ana Raquel Brochado: “Não sonho apitar na Liga”



Começou por brincadeira, frequentando um curso de arbitragem na escola secundária onde estudava. O encadeamento de bons resultados que foi obtendo levou a que a diversão se tornasse numa coisa mais séria. Dez anos volvidos, e depois de trilhar um caminho difícil, esta professora de Educação Física tornou-se na primeira mulher a ser promovida ao quadro nacional de árbitros. Actualmente com 26 anos, Ana Raquel tem, para já, como meta conquistar um lugar de relevo na III Divisão. Mas a questão fica no ar: que patamar poderá atingir a ‘dona do apito em Portugal’? O tempo encarregar-se-á de dar resposta.

Foto 1: Luís Brás
Foto 2 (a apitar): Mauro Duarte

Rola a Bola – O que representa para si a data de 17 de Setembro de 2006 [primeiro jogo na III Divisão, o Bombarralense-Monsanto]?
Ana Raquel Brochado – Essa data foi, no fundo, a concretização, perante os outros de uma coisa que já estava no papel. Já era árbitra de terceira categoria desde o início da época e aquele foi o primeiro jogo de seniores. Portanto, não foi o primeiro jogo, mas foi o primeiro de seniores e despertou muito o interesse dos media, dos colegas, dos dirigentes e por aí fora… Foi uma data muito positiva e marcante, como tinha que ser, para mim e para a minha equipa. No entanto, acima de tudo, foi mais uma data, porque as coisas já se tinham consumado antes.
- Nota alguma diferença entre apitar um jogo do Distrital e do Nacional?
- No futebol propriamente dito, não noto grande diferença, talvez porque a Divisão de Honra lisboeta é muito forte. Noto é uma diferença na forma como sou tratada por todos os elementos: dirigentes, jogadores, treinadores… Na III Divisão os árbitros são tratados com maior consideração.

“Noto um tratamento especial”

- Há quem diga que o futebol é um ‘mundo’ reservado aos homens. Já sentiu algum tipo de discriminação pelo facto de ser mulher?
- Costumo dizer que sinto discriminação positiva e negativa. Tenho noção que, quer quando é para ser mal-tratada, quer quando sou tratada com alguma distinção, isso tem relação com o facto de ser mulher num ‘mundo’ de arbitragem masculina. Noto um tratamento especial por parte das pessoas. Têm muito cuidado na abordagem e na relação, o que é muito positivo. A parte negativa não a sinto tanto da parte dos jogadores ou dos dirigentes, mas mais dos adeptos; vem mais do lado de fora, de pessoas que não estão dentro do futebol e que, muitas vezes, não têm sequer conhecimento desse ‘mundo’.
- É complicado lidar com os insultos?
- Encontrei a forma mais fácil de lidar que é não ligando. Pura e simplesmente, não tenho que os ouvir, ficam lá no campo sozinhos…
- Como se caracteriza enquanto árbitra?
- Vou utilizar só uma palavra: rigor. Tento colocá-lo em tudo o que faço, quer na minha postura em campo, quer na minha postura fora dele. Embora a arbitragem seja um ‘hobby’, não é a minha profissão, sou árbitra a tempo inteiro e não só ao fim-de-semana. A minha postura tenta mostrar sempre isso em tudo o que faço.
- Tem algum ídolo na arbitragem?
- Não. Nunca fui uma pessoa de ter ídolos, nem naquela fase da adolescência em que se colam ‘posters’ (risos). Gosto de aproveitar aquilo que de melhor cada um tem para me ensinar.
- Mas tem alguma referência?
- Existe, se calhar, o exemplo do Vítor Pereira. É uma pessoa que continua ligada à arbitragem e que prestigia a classe e o País. A postura dele agrada-me bastante, como dirigente e árbitro que foi. Depois há referências nos meus colegas, nas pessoas que lidam comigo e que vejo que fazem as coisas bem feitas. É aí que tento ir buscar os melhores exemplos.



“Sinto que reforcei uma expectativa de progressão”

- Sente-se um modelo para outras mulheres que estão, ou possam vir a entrar, neste sector?
- Não digo que seja um modelo, talvez uma referência, pois da mesma maneira que encontro coisas positivas e negativas nos outros, com certeza que também as encontrarão em mim.
- Mas sente que o seu exemplo pode constituir um estímulo para as outras mulheres na arbitragem?
- Sinto que, acima de tudo, reforcei uma expectativa de progressão, que, se calhar, estava muito apagada no espírito de algumas pessoas. Agora provou-se ser possível e, nesse aspecto, sinto que posso ter contribuído para outras mulheres tentarem fazer mais e melhor.
- Qual o seu objectivo em termos de arbitragem? Até onde ambiciona chegar?
- Sou de ambições muito presentes, não gosto de ‘voar’ muito alto. Nunca o fiz e tenho-me saído bem até agora. Portanto, acho que também não vou passar a fazê-lo. Neste momento, quero conquistar a III Divisão. Quero que as pessoas me reconheçam pelo meu trabalho, não por aquilo que vem nos jornais e que o meu lugar na III Divisão seja mais do que no papel, nos comunicados oficiais da Federação. Quando isso estiver conquistado, logo se vê…
- Tendo ainda vários anos de arbitragem pela frente, sonha apitar na I Liga?
- Não! (risos) É uma pergunta que toda a gente me faz, mas não tenho essa ambição.
- Não sonha, por exemplo, com um ‘derby’ Benfica-Sporting?
- Não. Se calhar sonho com uma grande competição internacional, como uma final dos Jogos Olímpicos, que é algo mais eclético. Liga, neste momento, não me atrai.
- Ainda que não seja um sonho para si, e em virtude de ser bastante jovem, acha possível atingir a I Liga ou esse espaço ainda estará vedado a uma mulher?
- Acho possível, mas não acredito que seja a minha geração a consegui-lo. Os regulamentos não vedam essa possibilidade.
- A arbitragem é uma actividade lucrativa?
- A partir de determinado nível, é. Por exemplo, neste momento, já tenho mais lucro do que gastos, pelo menos em termos efectivos. Digo isto porque uma coisa é aquilo que ganhamos em retribuição do que gastamos, outra coisa é se nós achamos que o que ganhamos retribui o nosso investimento, e aí, é difícil quantificar. Neste momento, aquilo que ganho com a arbitragem cobre aquilo que gasto com ela. Nos Distritais não podemos dizer que isso seja verdade, porque temos mais gastos e menos retorno.
- É mais por amor a uma causa…
- Sim, nos Distritais ‘corre-se muito por gosto’.

Directas

Situação caricata
“Não sei precisar, mas recentemente, houve um jogo em que um adepto pediu a minha camisola. Achei muito engraçado, mas eu não dei… (risos) Andou aos gritos para dentro de campo e depois andava a perguntar ao árbitro assistente qual o meu nome para fazer um cartaz, mas, como não chegou a sabê-lo, acabou por não fazer o cartaz.”

Profissionalização
“Para dizer se sou a favor ou contra teria que ter mais dados. Não disponho de dados suficientes sobre isso para poder dar uma opinião de valor muito definitiva. O que posso dizer é que não me parece que essa profissionalização seja para breve. No que diz respeito à possibilidade de um dia a considerar como opção para mim, não digo que não, mas digo que me sinto muito contente enquanto professora. Seria sempre uma decisão muito complicada, mas não excluo essa possibilidade.”

‘Apito dourado’
“Sobre o ‘Apito dourado’ não dou opiniões porque não quero saber. Sei menos sobre esse tema do que qualquer outra pessoa, porque simplesmente não procuro informação sobre o caso. Se não me atrai esse tipo de notícias como árbitra? Não, nada! Prefiro dar atenção a esse assunto quando as coisas forem mais definitivas. Neste momento, acho que há muitos factos por apurar e incomoda-me a especulação que se faz à volta do caso.”

3 comentários:

Anónimo disse...

Exemplo k vale a pena as mulheres lutarem por fazer coisas que mta gente pensa serem so para os homens.

Ricardo disse...

gostei...
será q posso publicar esta entrevista no meu blog?
ficava agradecido....
http://arbifute.blogspot.com

abraço

Anónimo disse...

Tive o grato de prazer de acompanhar, como delegado, um jogo arbitrado pela Dra. Ana Raquel Brochado. Muitos "senhores dos apitos" deveriam reciclar-se assintindo a exemplos de arbitragem assim. Por certo ganhariam noções de pedagogia, civismo e isenção.... enfim o que se viu foi verdadeiramente exemplar. Cumprimentos